As águas de meu coração deram de arrefecer por cansaço, desleixo ou descrença. Por qualquer coisa inexplicável, mas que me conforta, me permite respirar.
Volta para a cidade, dê a ela o que ela lhe tirou. Faça mais do que procriar códigos genéticos autônomos. Admiro sua perseverança humanitária e seu sentido de utilidade. Para além de trabalhar para sustentar o emprego, argumentar para sustentar a lógica, se relacionar para sustentar a solidão, amar.
O mundo anda torto.
Eu venho tentando me alinhar, não ao mundo.
Jamais a esse mundo.
16.12.09
11.12.09
Estou na sua contra-mão. Após tanto tempo em campo, tentando mudar o mundo, viajando, trabalhando e, principalmente, aprendendo, tenho a vontade imensa de voltar para a cidade. E estou voltando. Voltando para revisitar minha vida antiga, meu antigo eu, minha juventude e minhas antigas paixões. Quem sabe eu mudei? Sinto-me sério e vazio, sem desejos, sem fogo na vida. Por isso insistia tanto nas cartas para que você não se sentisse assim. Sei como é horrível. É preciso ter esperança. Não foram poucas as vezes que falei que queria rever os amigos, conversar sobre histórias partilhadas, ver o tempo passar com pessoas que amo. Eu preciso disso. Possuo raízes fortes e não é tão fácil mudar. Preciso das pessoas que me conhecem.
A Camile vai me receber na casa dela na próxima semana. Combinamos que eu irei morar lá até que eu encontre um trabalho. Enquanto isso, vou fazendo bicos por aí. Se não conseguir, volto para cá e continuo com minha tia. Estou ansioso quanto a volta. Espero que tudo dê certo.
Liguei para sua mãe e conversei bastante com ela. Em respeito ao seu pedido, apenas direi que ela está bastante preocupada com você.
Ao saber que você está na praia, lembrei-me de uma amiga da faculdade que dizia tomar banho de mar todos os dias pela manhã para poder equilibrar o resto do dia. Se for para o seu bem, que assim seja.
Até. Beijos.
A Camile vai me receber na casa dela na próxima semana. Combinamos que eu irei morar lá até que eu encontre um trabalho. Enquanto isso, vou fazendo bicos por aí. Se não conseguir, volto para cá e continuo com minha tia. Estou ansioso quanto a volta. Espero que tudo dê certo.
Liguei para sua mãe e conversei bastante com ela. Em respeito ao seu pedido, apenas direi que ela está bastante preocupada com você.
Ao saber que você está na praia, lembrei-me de uma amiga da faculdade que dizia tomar banho de mar todos os dias pela manhã para poder equilibrar o resto do dia. Se for para o seu bem, que assim seja.
Até. Beijos.
9.12.09
Não preciso de vermes alimentando-se de minhas mazelas! Já pratico minha autofagia diária!
Assim gritaria, sólida, uma de minhas personagens. Mas eu, não. Eu permito que assim se dê o banquete: interessados em sofrer, cá estou, apiedem-se! Como me cansam as colinas da vida, subir, descer, subir, descer... como um carrossel macabro.
Esqueça minha mãe, esqueça!!!! Por que eu procuro esqueçê-la! Procuro não dar de venta com ela e ter que lhe explicar e ter que alimentar, de minhas próprias carnes, o anseio maternal não-terapeutizado.
Como bem pôde perceber pelo envelope, mudei-me. Estou morando, por hora, na praia. Ares de saúde me farão bem. Aqui, se eu surtar, terei o mar pra quebrar em minhas costas e a carícia silenciosa da areia.
Ora, foda-se! Quem precisa das lógicas, das formas, do trânsito, dos problemas socio-economico -psico-culturais? Quem precisa do dióxido de carbono? Eu escolho oxigênio, hélio... Agora me veio a professora do colégio e a fundamental importância do carbono. Dei de me desfazer das coisas da juventude.
Não espere por mim, não espere que eu aja para saber que respostas se dá. Crie suas próprias perguntas, vasculhe seu baú tenebroso de quinquilharias egóicas. Não conte comigo como ação por que sou, pelo meu próprio conceito, desordem.
É por querer ser mar que as lágrimas salgam-se.
Abraços.
2.12.09
Às vezes me sinto totalmente perdido com você. Fico apenas esperando as coisas acontecerem para saber o que e se eu posso fazer. Não eram devaneios, era um diálogo profundo e sincero. Ou pelo menos uma tentativa. Espero que esse pedido de ajuda não seja uma fuga e que sua mania de fazer drama não influencie nas decisões que os outros podem ter sobre você. Desconfio de casas de repouso, mas acho que você também não pode continuar como está. Às vezes você é teimosa e irredutível e não percebe que as pessoas ao seu redor se preocupam com você. Dessa forma, acaba por afastá-las. Vou falar com sua mãe para saber melhor como você está, já que, creio, você não quer me encontrar.
Beijo grande.
Beijo grande.
24.11.09
Então não há acordo?
Querido, receio que nossos tempos de devaneios acabaram. As crises voltaram. A vida real também. Essa semana senti dores de cabeça e, num acesso de fúria destruí parte do meu quarto. Desloquei um dedo, quebrei a porta e alguns bibelôs antigos. Não me supunha com tamanha força.
Não tenho dormido e quando o consigo, acordo sufocada ou dolorida, como se dormir fosse uma guerra milenar, emagreci alguns quilos. O apetite também deu de me abandonar.
Mamãe vem pensando em me mandar para uma casa de repouso, peço que me ajude. Fale com ela por que eu... Eu?
Eu estou desfalecendo.
Querido, receio que nossos tempos de devaneios acabaram. As crises voltaram. A vida real também. Essa semana senti dores de cabeça e, num acesso de fúria destruí parte do meu quarto. Desloquei um dedo, quebrei a porta e alguns bibelôs antigos. Não me supunha com tamanha força.
Não tenho dormido e quando o consigo, acordo sufocada ou dolorida, como se dormir fosse uma guerra milenar, emagreci alguns quilos. O apetite também deu de me abandonar.
Mamãe vem pensando em me mandar para uma casa de repouso, peço que me ajude. Fale com ela por que eu... Eu?
Eu estou desfalecendo.
20.11.09
Há vida nas palavras. E essas palavras são o limite do sentimento e do querer sentir. Eu não sei para quem escrevemos. Creio que para nós mesmos. Também não sei se isso me basta: saber-se vivo.
Onde estamos? quem somos? Aonde vamos? São dúvidas que caem muito bem aos escritores destas cartas da mesma forma que aos que as escrevem. Subverter tantas vidas em prol da compartilha de tempo, risos e medos que nem sabemos quais são seria aceitar o eterno retorno?
Não há acordos implícitos. Apenas dançamos a mesma música, percebendo aos poucos para onde o outro se movimenta, na dúvida se somos guias ou somos guiados. Se a música acaba, continuaremos dançando?
O eterno retorno nos deixa a possibilidade de tentar ao máximo... a linearidade, sabemos, tem um fim. Toda escolha tem um peso. Mas qual será?
Onde estamos? quem somos? Aonde vamos? São dúvidas que caem muito bem aos escritores destas cartas da mesma forma que aos que as escrevem. Subverter tantas vidas em prol da compartilha de tempo, risos e medos que nem sabemos quais são seria aceitar o eterno retorno?
Não há acordos implícitos. Apenas dançamos a mesma música, percebendo aos poucos para onde o outro se movimenta, na dúvida se somos guias ou somos guiados. Se a música acaba, continuaremos dançando?
O eterno retorno nos deixa a possibilidade de tentar ao máximo... a linearidade, sabemos, tem um fim. Toda escolha tem um peso. Mas qual será?
12.11.09
Certas vezes me dá um aguneio, como se meu coração tivesse pressa, mas não... E quando vagueio pela cidade, atrás das janelas dos autos me lembro de você. Me questiono se deveríamos nos ver ou se o contato humano e quente provocaria resfriamento nestas cartas calorosas. É bom ser atemporal... Não ter tantas datas, tanta realidade.
Quanto é possível se comunicar sem som? Pensar em alguém que chama, atentar para as cores ímpares nas pessoas. Tudo é sintonia? Como se o mundo fosse milhares de pequenas frequências comunicacionais... Palavras, pequenas e grandes, feias e incríveis, navegando pelo mar dialógico, atravessando as pessoas, símbolos e energia. Reverberamos as vibrações que lançamos. Remontam a realidade em acordos implícitos, em consensos ditatoriais.
Troca Delleuze por mim? Eu não trocaria...
Mas a questão é: para quem escrevemos? Eu escrevo para ti e lanço em ti minha vibração? Ou há mais? Considero, portanto, que há vida nas palavras, nas minhas, nas tuas, nas palavras do mundo. Compreendes?
Ser o que deve ser feito de si; árdua tarefa para os neuróticos. Na sua intensa auto vigília, ser grande é privilégio. Dentro de nossos claustros, arquejamos delírios de grandeza ou um só coração ardendo no mesmo ritmo... Assim como o daquele que escreve.
Pode ser que não suportemos chegar onde queremos, pode ser que estar incompleto sempre, arrastando -se sempre para fora das frustrações seja uma sina que se alimenta de seus restos. Uma cobra mordendo o rabo. Círculos, elipse, o mesmo ponto. E pronto.
Quanto é possível se comunicar sem som? Pensar em alguém que chama, atentar para as cores ímpares nas pessoas. Tudo é sintonia? Como se o mundo fosse milhares de pequenas frequências comunicacionais... Palavras, pequenas e grandes, feias e incríveis, navegando pelo mar dialógico, atravessando as pessoas, símbolos e energia. Reverberamos as vibrações que lançamos. Remontam a realidade em acordos implícitos, em consensos ditatoriais.
Troca Delleuze por mim? Eu não trocaria...
Mas a questão é: para quem escrevemos? Eu escrevo para ti e lanço em ti minha vibração? Ou há mais? Considero, portanto, que há vida nas palavras, nas minhas, nas tuas, nas palavras do mundo. Compreendes?
Ser o que deve ser feito de si; árdua tarefa para os neuróticos. Na sua intensa auto vigília, ser grande é privilégio. Dentro de nossos claustros, arquejamos delírios de grandeza ou um só coração ardendo no mesmo ritmo... Assim como o daquele que escreve.
Pode ser que não suportemos chegar onde queremos, pode ser que estar incompleto sempre, arrastando -se sempre para fora das frustrações seja uma sina que se alimenta de seus restos. Uma cobra mordendo o rabo. Círculos, elipse, o mesmo ponto. E pronto.
4.11.09
Querida M.,
Entendo, sim. As surpresas e os prazeres que suas cartas me causam são motivos para horas e horas de reflexão sobre mim mesmo. É nestas cartas que vou diluindo minha vida, minha experiência, minha história, meus sentimentos, meus segredos... Um prazer egoísta (e qual não é?). Nas palavras ficam toda a entrega para dar o primeiro passo ou voltar. Mas nunca fica tudo. Por isso, desculpe-me por lhe causar impaciência ou ansiedade quando não lhe respondo logo. Se o faço, não é por desmerecimento, mas por procurar as palavras que possam ser mais do que palavras. Escrever, para mim, é muito difícil. É quase um sofrimento. É o momento da escolha que pesa, mas não dói. A ausência desse peso é que me faz sofrer. Ser livre é escolher mesmo aquilo que não nos agrada. É escolher não escolher. Viver uma liberdade fútil e descompromissada, fazendo o que bem quer na hora que quiser, nos faz despir a vida de sentidos. E o que seria de nós, então, tiranos? A liberdade é um plebiscito diário. Assim, não acho que nós tenhamos uma função na vida. Não acredito em destino. Acredito que temos um aos outro e temos que aprender a lidar com isso... E mais... acredito que estou bastante confuso com isso tudo. Brincadeira à parte, não desista da sua música. Tão bonita será, com certeza. Apenas deixe seu medo de lado e faça o que tem de fazer que a verdade se torna clara. Seja na sua carta, seja na sua música, seja na sua vida...
Sinto saudades suas e de falar essas baboseiras de pés pro alto, deitado no chão e todo metido a besta com você do meu lado. Ontem eu liguei para o Roberto. Ele está realmente procurando se curar dos males da vida. Seu tom de voz parecia animado, mas meio perdido. Convidei-o para passar uns dias aqui comigo, mas não creio que venha. E você, já voltou a trabalhar?
Tenho muito a escrever pra você, mas vou guardar um pouco pra depois. Vou ajudar no preparo da cajuína junto com seu Fernando e D. Antônia.
PS: Vagabundo não é fácil.
Um cheiro grande.
Sinto saudades suas e de falar essas baboseiras de pés pro alto, deitado no chão e todo metido a besta com você do meu lado. Ontem eu liguei para o Roberto. Ele está realmente procurando se curar dos males da vida. Seu tom de voz parecia animado, mas meio perdido. Convidei-o para passar uns dias aqui comigo, mas não creio que venha. E você, já voltou a trabalhar?
Tenho muito a escrever pra você, mas vou guardar um pouco pra depois. Vou ajudar no preparo da cajuína junto com seu Fernando e D. Antônia.
PS: Vagabundo não é fácil.
Um cheiro grande.
14.10.09
Num tempo, fui confortavelmente jovem e tudo era colorido. Os dias, as pessoas, as folhas das árvores em que me prostrei, Me perdi, com a vista embassada pela covardia. Meus temor nunca foi de ser incapaz, mas de me tornar verdadeiramente grande e a responsabilidade que isso implica. Dói... Toda escolha dói.Só temos que escolher as dores que melhor nos cabem.
Então, o tempo passou. E me tornei algo que não cumpriu sua função, que debandou para a dúvida. É preciso fortalecer para comunicar claramente as coisas. Eu preciso não temer alguns embates para fugir daqueles que realmente me atormentam.
Preciso sair daqui.
Por que não posso mais me comunicar dessa maneira tão vulgar, quero clareza produtiva. Eu quero o amor próprio do encontro que flui. Preciso me tonificar, me arquear sobre o mundo...
Eu sou a mentira, lutando para ser mais do que simples lenda.
Você entende?
Você não é aquilo que acredita, mas o que faz com aquilo que acredita... Eu fiz nada. A minha fé, frívola, vulgar, inquieta... Deslisou... e eu esqueci como era aquecer o coração com fé. Ter o peito acalentado pelo sentimento de que pode ser... pode ser que dê certo.
Eu não estou mais entendendo.
Para onde vai?
Ah, meu querido...
Seremos mais do que meras palavras?
Inclusive aqui, nessas cartas?
O que é nosso nas palavras?
Não pude esperar resposta.
Agora espero.
Então, o tempo passou. E me tornei algo que não cumpriu sua função, que debandou para a dúvida. É preciso fortalecer para comunicar claramente as coisas. Eu preciso não temer alguns embates para fugir daqueles que realmente me atormentam.
Preciso sair daqui.
Por que não posso mais me comunicar dessa maneira tão vulgar, quero clareza produtiva. Eu quero o amor próprio do encontro que flui. Preciso me tonificar, me arquear sobre o mundo...
Eu sou a mentira, lutando para ser mais do que simples lenda.
Você entende?
Você não é aquilo que acredita, mas o que faz com aquilo que acredita... Eu fiz nada. A minha fé, frívola, vulgar, inquieta... Deslisou... e eu esqueci como era aquecer o coração com fé. Ter o peito acalentado pelo sentimento de que pode ser... pode ser que dê certo.
Eu não estou mais entendendo.
Para onde vai?
Ah, meu querido...
Seremos mais do que meras palavras?
Inclusive aqui, nessas cartas?
O que é nosso nas palavras?
Não pude esperar resposta.
Agora espero.
7.10.09
Meu querido amigo,
Há tempos de se compreender as coisas, construímos com suor e palavras intanguidas, todas as certezas. Modelamos suas cores e damos vida às lembranças, deixamos que elas ordenem. Mas segue sempre a atribulação. As mulheres precisam ser cíclicas, elas são o ponto de intercecção entre a vida e a morte. O parto.
Você entende, eu acredito, meus motivos para não ter parido. Às vezes eu não entendo muito bem... Nunca quis me prender, até que algo se rompeu. E eu estou flutuando na história.
Não me diga que achou que eu estabeleceria padrão?
Hoje eu fui pro mar e decidi não morrer; mas arder. Deixei no silício, o silêncio. Com os pés bem cravados na areia, constatei o sal e o sol deste dia "cinzazul". Que mais importa, além do que, àvidos, constatamos vivos? Fui afogar minhas pragas, enterrar na sílica o cilício de meus segredos.
Tentei escrever uma música. Mas sempre perco o passo, fica tudo entruncado. Não sou Arnaldo Antunes, então... Fico feliz de te escrever, dançamos assim.
Dica desta carta: A excêntrica família de Antonia.
Um enorme beijo!
Há tempos de se compreender as coisas, construímos com suor e palavras intanguidas, todas as certezas. Modelamos suas cores e damos vida às lembranças, deixamos que elas ordenem. Mas segue sempre a atribulação. As mulheres precisam ser cíclicas, elas são o ponto de intercecção entre a vida e a morte. O parto.
Você entende, eu acredito, meus motivos para não ter parido. Às vezes eu não entendo muito bem... Nunca quis me prender, até que algo se rompeu. E eu estou flutuando na história.
Não me diga que achou que eu estabeleceria padrão?
Hoje eu fui pro mar e decidi não morrer; mas arder. Deixei no silício, o silêncio. Com os pés bem cravados na areia, constatei o sal e o sol deste dia "cinzazul". Que mais importa, além do que, àvidos, constatamos vivos? Fui afogar minhas pragas, enterrar na sílica o cilício de meus segredos.
Tentei escrever uma música. Mas sempre perco o passo, fica tudo entruncado. Não sou Arnaldo Antunes, então... Fico feliz de te escrever, dançamos assim.
Dica desta carta: A excêntrica família de Antonia.
Um enorme beijo!
2.10.09
Querida M.,
não se trata de carregar o mundo nas costas, muito menos de me achar o Messias da comunidade. Quando falei que era apenas um peso, talvez tenha me expressado mal. Não me sinto menor do que as pessoas com as quais divergi nos últimos dias. Nem minha auto-estima anda tão baixa assim. Apenas percebi o quanto almejamos caminhos diferentes. Talvez isso é que tenha doído mais. Apesar de falar mal das pessoas que ali chegaram, tive que reconhecer que também caí lá de pára-quedas. Desta forma, todos nós fomos oportunistas. Fui convidado e cheguei lá apaixonado, cheio de idéias, com muita empolgação. Mas a realidade é outra. Percebi que eu era a voz destoante daquele lugar, por isso decidi sair. É preciso saber reconhecer quando se perde uma batalha. Mas deixemos isso de lado, por enquanto. Ainda há muito para eu refletir sobre esse últimos anos.
Quanto ao Roberto, não me surpreende tanto ele ter se tornado evangélico. Sempre o achei mal-resolvido consigo mesmo e não me surpreende se daqui a pouco ele decida mudar de religião. Tenho pena dele, principalmente por causa da forma que o pai o tratava. Mas acho que faltava nele um pouco de coragem para lidar com isso, aceitar que sua relação com o pai não era boa e pronto. Passar anos e anos procurando a aceitação de uma pessoa não faz bem à ninguém. Da última vez que estive com ele, falávamos sobre isso. Ele ficou chateado comigo quando eu disse que boa parte do sofrimento que sentia era culpa dele mesmo. Depois me ligou para dizer que achava que eu tinha razão e que ligaria um "foda-se" na vida dele. Mas acho que a proposta de uma salvação pareceu mais tentadora. Respeito sua decisão, mas se ele me perguntar, direi que não concordo. A gente acabou se distanciando um pouco, mas ainda guardo um carinho muito grande por ele. Aliás, eu que acabei me distanciando de muita gente.
Mas vou ter a oportunidade de rever algumas pessoas. Estou voltando para o Ceará. Vou passar um tempo na fazenda da minha tia Sílvia. Lembra que já falei dela? A fazenda é ali pertinho de Itapipoca. Vou cuidar das coisas de lá enquanto ela vai resolver uns assuntos em Fortaleza. Gosto muito daquela fazenda. Foi no açude de lá, ainda criança, que aprendi a nadar. Bons tempos.
Estou de partida para lá amanhã. A viagem vai ser longa. Quando quiser me escrever, entregue a carta ao meu primo Felipe. Ele me entregará quando for à fazenda. Fiquei feliz e tranquilo ao saber que você melhorou. Que bom. Sei que você quer voltar ao trabalho mas pegue leve no começo, não vá trabalhar demais. Descanse e se divirta muito. Isto é essencial.
Beijos,
M.P.
Quanto ao Roberto, não me surpreende tanto ele ter se tornado evangélico. Sempre o achei mal-resolvido consigo mesmo e não me surpreende se daqui a pouco ele decida mudar de religião. Tenho pena dele, principalmente por causa da forma que o pai o tratava. Mas acho que faltava nele um pouco de coragem para lidar com isso, aceitar que sua relação com o pai não era boa e pronto. Passar anos e anos procurando a aceitação de uma pessoa não faz bem à ninguém. Da última vez que estive com ele, falávamos sobre isso. Ele ficou chateado comigo quando eu disse que boa parte do sofrimento que sentia era culpa dele mesmo. Depois me ligou para dizer que achava que eu tinha razão e que ligaria um "foda-se" na vida dele. Mas acho que a proposta de uma salvação pareceu mais tentadora. Respeito sua decisão, mas se ele me perguntar, direi que não concordo. A gente acabou se distanciando um pouco, mas ainda guardo um carinho muito grande por ele. Aliás, eu que acabei me distanciando de muita gente.
Mas vou ter a oportunidade de rever algumas pessoas. Estou voltando para o Ceará. Vou passar um tempo na fazenda da minha tia Sílvia. Lembra que já falei dela? A fazenda é ali pertinho de Itapipoca. Vou cuidar das coisas de lá enquanto ela vai resolver uns assuntos em Fortaleza. Gosto muito daquela fazenda. Foi no açude de lá, ainda criança, que aprendi a nadar. Bons tempos.
Estou de partida para lá amanhã. A viagem vai ser longa. Quando quiser me escrever, entregue a carta ao meu primo Felipe. Ele me entregará quando for à fazenda. Fiquei feliz e tranquilo ao saber que você melhorou. Que bom. Sei que você quer voltar ao trabalho mas pegue leve no começo, não vá trabalhar demais. Descanse e se divirta muito. Isto é essencial.
Beijos,
M.P.
13.9.09
M.P.,
Primeiro: que palhaçada é essa de "Sou só um peso. Não sirvo pra nada."? Ao ler isso, meus óculos saltaram longe de espanto que alguém como você tenha coragem de se apontar desta maneira. Absurdo!
Compreendo, apesar de parecer que não, as dificuldades pela quais vem passando. Levar o mundo nas costas é tarefa que, talvez, nem Sísifo fosse capaz de cumprir. Mas a questão é: como um homem tão bem arquitetado em seus pensamentos, pode cair em tal armadilha moral? Crer que a comunidade depende unicamente de seus ombros pra carrega la. Continue assim e não passará de um cabide universal. Para que uma comunidade funcione, é preciso que haja o sentimento de responsabilidade coletiva, o sentimento pulsante de que se está caminhando para o mesmo lado, construindo as paredes da mesma moradia. Inútil espernear e choramingar sozinho.
Eu expulsaria os membros incovenientes sob certeiros sopapos verbais. Vermes da impotência, da incredulidade e do vazio, agentes da mediocridade, do populismo e da imagem! Eu os esmagaria! Ainda que a anarquia seja impossível, meu amigo, eu não suportaria ver a displicência de terceiros esmaecendo as cores de meus planos. Lute com coragem! O amor e a beleza também se erguem sobre os punhos de um homem! Não há comiseração que lhes sirva. Não, não, não! É preciso abrir caminhos de palavras e deixar que o verbo seja a guilhotina dos parasitas ideológicos. É preciso arregaçar as hipocresias e garantir que essa sedução escrota do "amor livre", do "vamos todos juntos, enquanto espero sentado" seja repudiada pelo pensamento crítico.
Ah, meu querido amigo... Desconfio, no entanto, que esta nem seja tua real questão. Anseias abandonar? Faça! Role novamente a tua pedra morro acima e erga o sol do novo dia.
Eu estou bem, engordei um pouco, já caminho com tranquilidade e firmeza. Foi triste ter que dispensar a tal enfermeira, mas assim foi feito. Espero retomar os trabalhos na universidade daqui a poucas semanas, já não suporto ficar trancafiada. Me sinto Bárbara de Alencar, em seu claustro. Olhando o mar por entre frestras, sentindo os resquícios da manhã, sem, no entanto, ser capaz de toca la.
Tão logo este carcereiro abandonará os portões abertos e, com saúde, poderei pisar a areia flácida da praia.
Roberto veio me ver. Acredita que se tornou evangélico? Arrependido, resignado pelos anos de adoração ao diabo, pela luxúria, pelos vícios. Busca a cura, após a morte de seu pai, para o homossexualismo que, segundo ele, é o mal que o cegou nesses anos todos. Juro que assisti, incrédula, ele desfolhar palavra por palavra a Bíblia, desfiando pacientemente o pensamento judaico -cristão da culpa, da resiliência e da impotência. Diante da cena, que eu adjetivaria como bizarra, pensei mesmo que ele esquizofrenizara. Lembra como ele sofria por que o pai o rejeitava? Bebia e chorava horrores.
Nenhum problema quanto a opção religiosa das pessoas, mas ao ouvir que ele se atacou até minha casa para me salvar, apossou -se de mim uma revolta incontrolável. Avancei sobre ele! Mas antes de desfigurar lhe a cara, pensei: não me custará nada ser salva. Se meu amigo precisa me salvar, ainda que eu, de nenhuma maneira esteja em perigo, nem mesmo disposta ao arrependimento, laisser faire.
Ele rezou, chorou baixinho por alguns minutos e foi embora. Temo por ele.
Paro aqui...
Abraços.
M.
Compreendo, apesar de parecer que não, as dificuldades pela quais vem passando. Levar o mundo nas costas é tarefa que, talvez, nem Sísifo fosse capaz de cumprir. Mas a questão é: como um homem tão bem arquitetado em seus pensamentos, pode cair em tal armadilha moral? Crer que a comunidade depende unicamente de seus ombros pra carrega la. Continue assim e não passará de um cabide universal. Para que uma comunidade funcione, é preciso que haja o sentimento de responsabilidade coletiva, o sentimento pulsante de que se está caminhando para o mesmo lado, construindo as paredes da mesma moradia. Inútil espernear e choramingar sozinho.
Eu expulsaria os membros incovenientes sob certeiros sopapos verbais. Vermes da impotência, da incredulidade e do vazio, agentes da mediocridade, do populismo e da imagem! Eu os esmagaria! Ainda que a anarquia seja impossível, meu amigo, eu não suportaria ver a displicência de terceiros esmaecendo as cores de meus planos. Lute com coragem! O amor e a beleza também se erguem sobre os punhos de um homem! Não há comiseração que lhes sirva. Não, não, não! É preciso abrir caminhos de palavras e deixar que o verbo seja a guilhotina dos parasitas ideológicos. É preciso arregaçar as hipocresias e garantir que essa sedução escrota do "amor livre", do "vamos todos juntos, enquanto espero sentado" seja repudiada pelo pensamento crítico.
Ah, meu querido amigo... Desconfio, no entanto, que esta nem seja tua real questão. Anseias abandonar? Faça! Role novamente a tua pedra morro acima e erga o sol do novo dia.
Eu estou bem, engordei um pouco, já caminho com tranquilidade e firmeza. Foi triste ter que dispensar a tal enfermeira, mas assim foi feito. Espero retomar os trabalhos na universidade daqui a poucas semanas, já não suporto ficar trancafiada. Me sinto Bárbara de Alencar, em seu claustro. Olhando o mar por entre frestras, sentindo os resquícios da manhã, sem, no entanto, ser capaz de toca la.
Tão logo este carcereiro abandonará os portões abertos e, com saúde, poderei pisar a areia flácida da praia.
Roberto veio me ver. Acredita que se tornou evangélico? Arrependido, resignado pelos anos de adoração ao diabo, pela luxúria, pelos vícios. Busca a cura, após a morte de seu pai, para o homossexualismo que, segundo ele, é o mal que o cegou nesses anos todos. Juro que assisti, incrédula, ele desfolhar palavra por palavra a Bíblia, desfiando pacientemente o pensamento judaico -cristão da culpa, da resiliência e da impotência. Diante da cena, que eu adjetivaria como bizarra, pensei mesmo que ele esquizofrenizara. Lembra como ele sofria por que o pai o rejeitava? Bebia e chorava horrores.
Nenhum problema quanto a opção religiosa das pessoas, mas ao ouvir que ele se atacou até minha casa para me salvar, apossou -se de mim uma revolta incontrolável. Avancei sobre ele! Mas antes de desfigurar lhe a cara, pensei: não me custará nada ser salva. Se meu amigo precisa me salvar, ainda que eu, de nenhuma maneira esteja em perigo, nem mesmo disposta ao arrependimento, laisser faire.
Ele rezou, chorou baixinho por alguns minutos e foi embora. Temo por ele.
Paro aqui...
Abraços.
M.
2.9.09
Querida M.,
Tanta coisa aconteceu nestes últimos dias que ainda nem sei o que pensar e fazer da vida. Desculpe-me pela demora na entrega da carta, tentei lhe escrever várias vezes mas sempre me faltaram palavras ou mesmo forças para continuar. Os últimos dias aqui não foram lá muito agradáveis, por isso não se anime muito em receber notícias minhas. Estou de mudança novamente. Vou largar a comunidade para viver sabe Deus onde. As coisas estão difíceis e não é por esperar a bondade nos outros, você sabe muito bem que não tenho essa visão romântica das mudanças. Tenho que reconhecer meu limite e ter autocrítica, tentar perceber o que deu errado, me afastar para poder ver de perto. Passaram-se três anos... muita coisa boa aconteceu, é verdade, mas tentar construir uma comunidade anarquista de verdade é muito difícil. De um tempo pra cá, o grupo sofreu muita mudança. Muita gente oportunista entrou e isso tem criado situações constrangedoras entre a gente. Não é só a dificuldade de relacionamento interna que tem se tornado um obstáculo, mas o grupo tem sido mal-falado, além das chuvas constantes no começo do ano que destruíram boa parte da plantação que nos ajudava a sobreviver aqui. E é no momento de dificuldade que a gente vê quem é quem... Algumas pessoas se entristeceram com minha partida, mas ela se faz necessária. Você me disse, na última carta, que eu precisava ser líder e estratégico. Eu já havia tentado, mas acho que não fui muito bem. Confesso que tinha muito medo de assumir uma liderança pois não gosto de autoridades, mesmo que simbólicas. Mas enquanto me esforçava para colocar em prática minhas idéias, o tempo se encarregou de mudar minha visão e me fez perceber o óbvio: cada pessoa é diferente. Aceitar minha diferença em relação ao grupo foi o que mais me doeu. Não sirvo mais pra esse lugar. Não acrescento em nada, sou apenas um peso. Temos objetivos diferentes e é por isso que optei por minha saída. Desculpe-me pela confusão neste texto... eu mesmo ainda estou muito confuso e incerto com meu futuro.
Eu ainda estou com muita vontade de lhe visitar pois a saudade é grande e a preocupação com sua saúde a torna ainda maior. Mas, por tudo que aconteceu comigo aqui e por ficar mais tranquilo ao saber que você está melhor, acaterei sua proibição. Sorte sua. Depois que resolver a minha vida vou dar um pulo na sua casa pra lhe visitar para ver com os meus próprios olhos que você continua linda, pois não acredito nem um pouco na idéia de que você não tem condições de seduzir esses enfermeiros garotões.
Quanto ao filme que você falou, eu ainda não o vi. Mas, com um tema parecido, já li "Johnny vai à guerra" e fiquei imaginando como seria ficar preso em si mesmo. Agoniante, mas muito bom (o livro, é claro).
Tenho que ir. Há muita coisa para arrumar e muitas decisões para tomar.
Pode escrever para cá, ainda. Só partirei depois que receber uma nova carta sua. Depois lhe escreverei sabe-se lá de onde.
Beijos afetuosos, minha "sádica" e linda amiga.
M.P.
Eu ainda estou com muita vontade de lhe visitar pois a saudade é grande e a preocupação com sua saúde a torna ainda maior. Mas, por tudo que aconteceu comigo aqui e por ficar mais tranquilo ao saber que você está melhor, acaterei sua proibição. Sorte sua. Depois que resolver a minha vida vou dar um pulo na sua casa pra lhe visitar para ver com os meus próprios olhos que você continua linda, pois não acredito nem um pouco na idéia de que você não tem condições de seduzir esses enfermeiros garotões.
Quanto ao filme que você falou, eu ainda não o vi. Mas, com um tema parecido, já li "Johnny vai à guerra" e fiquei imaginando como seria ficar preso em si mesmo. Agoniante, mas muito bom (o livro, é claro).
Tenho que ir. Há muita coisa para arrumar e muitas decisões para tomar.
Pode escrever para cá, ainda. Só partirei depois que receber uma nova carta sua. Depois lhe escreverei sabe-se lá de onde.
Beijos afetuosos, minha "sádica" e linda amiga.
M.P.
19.8.09
M.P.,
Quando me contou que iria morar numa comunidade temi que se decepcionasse. Acreditar na humanidade e tentar transformá la não significa ignorar os aspectos tenebrosos de nossa espécie. Essa concepção romântica de que somos seres evoluídos, íntegros sempre me coloca numa posição incômoda. Pela paz interior e inabalável seria preciso ser um heremita. Não quero que volte, que abandone suas metas, mas pense no que lhe digo. Uma comunidade, para viver em paz, tem que ter o sentimento comum de construção e não as pernas abertas para a "bondade", "gerenosidade". Desconsiderar as falhas ou bater cabeça na incompreensão de suas causas é perda de tempo. É preciso ser estratégico, ser líder, organizar as pessoas em torno do ganho, da sustentação. O que nada tem a ver com os déspotas.
Particularmente, compartilho com Capote o encantamento acerca da possibilidade de se ser miserável e cruel. Os animais não são piedosos uns com os outros, não sentem culpa. Eu seria feliz, se assim fosse. Me entedia profundamente esse pensamento estatunidense ridículo de que sempre haverão os dignos e os maus e que, em função de defender a liberdade, vamos trucidar os maus por que somos bons. Nós todos somos um sistema complexo, qualquer um é capaz de matar, de arrancar os olhos de alguém se preciso for. Portanto, meu querido, não apóio sua viagem para me ver, há muito trabalho onde você está.
Além do mais, não quero que me veja, aliás, o proíbo de me ver. Estou melhorando, próxima semana irei para casa, mas ainda estou magra e frágil e você sabe que não suporto o olhar de piedade que inevitavelmente as pessoas lançam sobre os moribundos. Por sinal, eu não estou moribunda. Rs. O médico disse que meu corpo vem reagindo muito bem e que essas coisas são assim mesmo.
Minha mãe, aquela senhorinha... Paga um casal de enfermeiros que eu mesma selecionei. Belíssimos. Veja bem que não tenho condições de seduzir nem um cachorrinho, quem dirá jovens "fisicamente bem sucedidos", mas não acho que faça mal algum olhar para eles. Só às vezes peço que ele se encarregue do banho. Que divetido! Eu seria Marquês de Sade.
Existe um filme francês que se chama "O escafandro e a borboleta". Líndo, de uma delicadeza incrível. Revi esses dias e chorei do primeiro segundo ao útimo. Temi... É o pesadelo de todos que se consideram pensantes. Estar preso dentro do próprio corpo débil e inútil.
Preciso ir, meu casal predileto de enfermeiros me chama.
Me escreva tão logo possa, mas não se force... É melhor quando natural...
Amo você, meu amigo querido.
Quando me contou que iria morar numa comunidade temi que se decepcionasse. Acreditar na humanidade e tentar transformá la não significa ignorar os aspectos tenebrosos de nossa espécie. Essa concepção romântica de que somos seres evoluídos, íntegros sempre me coloca numa posição incômoda. Pela paz interior e inabalável seria preciso ser um heremita. Não quero que volte, que abandone suas metas, mas pense no que lhe digo. Uma comunidade, para viver em paz, tem que ter o sentimento comum de construção e não as pernas abertas para a "bondade", "gerenosidade". Desconsiderar as falhas ou bater cabeça na incompreensão de suas causas é perda de tempo. É preciso ser estratégico, ser líder, organizar as pessoas em torno do ganho, da sustentação. O que nada tem a ver com os déspotas.
Particularmente, compartilho com Capote o encantamento acerca da possibilidade de se ser miserável e cruel. Os animais não são piedosos uns com os outros, não sentem culpa. Eu seria feliz, se assim fosse. Me entedia profundamente esse pensamento estatunidense ridículo de que sempre haverão os dignos e os maus e que, em função de defender a liberdade, vamos trucidar os maus por que somos bons. Nós todos somos um sistema complexo, qualquer um é capaz de matar, de arrancar os olhos de alguém se preciso for. Portanto, meu querido, não apóio sua viagem para me ver, há muito trabalho onde você está.
Além do mais, não quero que me veja, aliás, o proíbo de me ver. Estou melhorando, próxima semana irei para casa, mas ainda estou magra e frágil e você sabe que não suporto o olhar de piedade que inevitavelmente as pessoas lançam sobre os moribundos. Por sinal, eu não estou moribunda. Rs. O médico disse que meu corpo vem reagindo muito bem e que essas coisas são assim mesmo.
Minha mãe, aquela senhorinha... Paga um casal de enfermeiros que eu mesma selecionei. Belíssimos. Veja bem que não tenho condições de seduzir nem um cachorrinho, quem dirá jovens "fisicamente bem sucedidos", mas não acho que faça mal algum olhar para eles. Só às vezes peço que ele se encarregue do banho. Que divetido! Eu seria Marquês de Sade.
Existe um filme francês que se chama "O escafandro e a borboleta". Líndo, de uma delicadeza incrível. Revi esses dias e chorei do primeiro segundo ao útimo. Temi... É o pesadelo de todos que se consideram pensantes. Estar preso dentro do próprio corpo débil e inútil.
Preciso ir, meu casal predileto de enfermeiros me chama.
Me escreva tão logo possa, mas não se force... É melhor quando natural...
Amo você, meu amigo querido.
13.8.09
M.,
sei que você é dramática, sim. Sei que já discutimos isso, mas a cada carta sua que recebo fico mais preocupado. Dói-me saber que você está doente e eu não posso estar aí ao seu lado lhe ajudando, cuidando. Que síndrome é esta, meu Deus? Como está a sua mãe, ela já está sabendo disso? Estou providenciando uma visita à você, creio que em alguns dias poderia sair daqui e reencontrá-la. Faz tanto tempo que não nos vemos... sinto muita saudades. Queria que a ocasião fosse outra, mais festiva. Mas será divertido pelo menos jogar conversa fora e, quem sabe, ir à praia. Ainda ontem revi o álbum da nossa turma. Tão engraçado ver todos com cara de despreocupados, sem medo do que haveria de vir. Você, como sempre, com cara de "tô nem aí". Sinto muita saudade de todos. Sinto-me muito solitário aqui e penso freqüentemente em mudar de cidade e de vida. Os planos que tracei para criar uma comunidade livre não estão dando certo. Mas como você disse, "é preciso envergar para não quebrar". Dê-me notícias de como anda o tratamento. Em breve nos veremos.
Beijos,
M.P.
sei que você é dramática, sim. Sei que já discutimos isso, mas a cada carta sua que recebo fico mais preocupado. Dói-me saber que você está doente e eu não posso estar aí ao seu lado lhe ajudando, cuidando. Que síndrome é esta, meu Deus? Como está a sua mãe, ela já está sabendo disso? Estou providenciando uma visita à você, creio que em alguns dias poderia sair daqui e reencontrá-la. Faz tanto tempo que não nos vemos... sinto muita saudades. Queria que a ocasião fosse outra, mais festiva. Mas será divertido pelo menos jogar conversa fora e, quem sabe, ir à praia. Ainda ontem revi o álbum da nossa turma. Tão engraçado ver todos com cara de despreocupados, sem medo do que haveria de vir. Você, como sempre, com cara de "tô nem aí". Sinto muita saudade de todos. Sinto-me muito solitário aqui e penso freqüentemente em mudar de cidade e de vida. Os planos que tracei para criar uma comunidade livre não estão dando certo. Mas como você disse, "é preciso envergar para não quebrar". Dê-me notícias de como anda o tratamento. Em breve nos veremos.
Beijos,
M.P.
29.7.09
Querido,
quero que me desculpe, se demoro a responder suas cartas. Tenho me sentido cansada. Reconheço com felicidade sua boa vontade, seu ânimo, mas temo que não esteja a par dos últimos acontecimentos.
Sei de minha dramaticidade e já debatemos, sim, por horas acerca de meu desejo obscuro de morrer de maneira gloriosa. Essa não é uma delas. Já faz alguns meses que não nos falamos, portanto não é de se estranhar seu desconhecimento. Querido, foi descoberta em mim uma síndrome raríssima, cujo nome é tão complexo que não me ocuparei em escrevê lo por que não faz a menor diferença. Segundo os médicos, ela não necessariamente me matará, mas venho sendo submetida a alguns procedimentos: exames, coletas, experiências... Algo me diz que eles, os cientistas, médicos e especialistas estão completamente perdidos. Não sabem, em absoluto, o que estão fazendo.
Cá do lado das cobaias, tenho me sentido tranquila. Embora, vez por outra, alguém adentre o quarto com olhares de despedida e eu mesma pense sobre a morte diariamente. Não quero ter medo, nem me arrepender, nem rezar. De alguma maneira, algo me certifica de que não será dessa vez. Lembra de quando me acidentei no carro? Bêbada e louca, quem me aconselharia a dirigir? Apesar da quinzena em coma, saí ilesa. Naquela ocasião eu também me sentia intuitivamente segura... Mas há sempre o encontro daquilo que sentimos com aquilo que queremos sentir, então prefiro me abster de opiniões definitivas, assim como os médicos.
Tenho sonhado muito, todos os dias, em diferentes momentos. Chego a crer que venho sonhando acordada. Podem ser alucinações... São sempre sonhos claros, vivos, deliciosos... Dias de sol, voando por sobre o mar. Sonhei, certa vez com você me fazendo carinho nos cabelos e sorrindo, dizendo que seria pai e que seria lindo.
Querido, é preciso envergar para não quebrar.
Amanhã irei à praia, vai ser lindo.
Beijos de saudade.
quero que me desculpe, se demoro a responder suas cartas. Tenho me sentido cansada. Reconheço com felicidade sua boa vontade, seu ânimo, mas temo que não esteja a par dos últimos acontecimentos.
Sei de minha dramaticidade e já debatemos, sim, por horas acerca de meu desejo obscuro de morrer de maneira gloriosa. Essa não é uma delas. Já faz alguns meses que não nos falamos, portanto não é de se estranhar seu desconhecimento. Querido, foi descoberta em mim uma síndrome raríssima, cujo nome é tão complexo que não me ocuparei em escrevê lo por que não faz a menor diferença. Segundo os médicos, ela não necessariamente me matará, mas venho sendo submetida a alguns procedimentos: exames, coletas, experiências... Algo me diz que eles, os cientistas, médicos e especialistas estão completamente perdidos. Não sabem, em absoluto, o que estão fazendo.
Cá do lado das cobaias, tenho me sentido tranquila. Embora, vez por outra, alguém adentre o quarto com olhares de despedida e eu mesma pense sobre a morte diariamente. Não quero ter medo, nem me arrepender, nem rezar. De alguma maneira, algo me certifica de que não será dessa vez. Lembra de quando me acidentei no carro? Bêbada e louca, quem me aconselharia a dirigir? Apesar da quinzena em coma, saí ilesa. Naquela ocasião eu também me sentia intuitivamente segura... Mas há sempre o encontro daquilo que sentimos com aquilo que queremos sentir, então prefiro me abster de opiniões definitivas, assim como os médicos.
Tenho sonhado muito, todos os dias, em diferentes momentos. Chego a crer que venho sonhando acordada. Podem ser alucinações... São sempre sonhos claros, vivos, deliciosos... Dias de sol, voando por sobre o mar. Sonhei, certa vez com você me fazendo carinho nos cabelos e sorrindo, dizendo que seria pai e que seria lindo.
Querido, é preciso envergar para não quebrar.
Amanhã irei à praia, vai ser lindo.
Beijos de saudade.
22.7.09
Querida M.,
Que baita susto eu tive quando li sua carta! Confesso que ainda estou sem entender muito bem o que aconteceu... morrer?! Por quê?! Depois de tanto tempo sem notícias suas, sou pego de surpresa por linhas tão tristes e amarguradas. Bem sei que você sempre teve épocas melancólicas, mas sempre percebi isso como um romantismo bastante peculiar que você teimava em esconder. Mas isso que você me escreveu já é demais... Por favor, não me venha com conformismos diante da sua condição! Matar-se resolveria o quê? As dores, a gente aprende a conviver com elas, por mais difícil que seja. Reage, criatura, cria coragem e fé pra mudar! Muda sua atitude para que as coisas aconteçam e você possa se eternizar. Não é só o mar que é eterno. Nós também nos eternizamos quando deixamos e recebemos um tanto nos encontros da vida. Nós nos eternizamos nos outros. E isso não é apego à espécie, é a vida. O que seria do mar se não fossem os rios, as chuvas, o calor? Morrer é natural. Matar-se é se limitar. É se limitar ao que conhece, ao que tem medo. Não fale mais isso nem por brincadeira. Você também sabe o quanto me faria mal a sua ausência. Dê-me detalhes para que eu possa lhe visitar e acabar com essa saudade que sinto.
Beijos carinhosos.
Beijos carinhosos.
15.7.09
M.P.,
Esta foi uma noite importante. Quase me entreguei às afecções que me tomam. Por isso, escrevo. Meu corpo tem, aos poucos, denunciado seu padecimento e me entedia pensar nos tratamentos e no vocabulário rebuscado e vazio da Medicina. Meus joelhos ainda dóem, sinto a pressão craniana aumentar. Não é fantástico?
Eu vou morrer. Assim como esse quarto, as ruas, os flamboyantts, os carros, as falésias, tudo há de se dissipar, envelhecer, deteriorar. Menos o mar. Em tempos de mais saúde, punha me frente ao mar e imaginava que ele sim seria nosso ancestral legítimo. Só o mar é eterno. Quero voltar pra casa e tomar um banho em águas salinas. Voltar pra casa.
Pra quê a dor? Eu penso... E me nego a dotar explicações vagas, tenebrosas e cristãs. Esse é, enfim, o preço que preciso pagar, em vida, por essa mesma vida que se finda? Eu teria sido ainda mais pagã, se quer saber. Me queixo, unicamente, de não ter ido mais longe, enlouquecido mais, amado mais homens. Afinal, meu maior medo, a velhice, se extingue nesta cama.
Ontem, enquanto a enfermeira reposicionava os travesseiros e eu resmungava incompreensivelmente, pensei: Por que não? Por que não morrer? Qual é o problema? Temos milhões de pessoas em todo o mundo, uma superpopulação que se divide entre os consumistas e os miseráveis. Eu deveria mesmo passar por isso com coragem e acreditar que estou vagando espaço precioso no mundo. Eu me mataria, se conseguisse me levantar. O melhor analgésico, o melhor. Ridículo esse apego animalesco de preservação da espécie.
Preciso findar essa carta aqui. Hora da medicação.
Muita saudade, querido.
M.
Eu vou morrer. Assim como esse quarto, as ruas, os flamboyantts, os carros, as falésias, tudo há de se dissipar, envelhecer, deteriorar. Menos o mar. Em tempos de mais saúde, punha me frente ao mar e imaginava que ele sim seria nosso ancestral legítimo. Só o mar é eterno. Quero voltar pra casa e tomar um banho em águas salinas. Voltar pra casa.
Pra quê a dor? Eu penso... E me nego a dotar explicações vagas, tenebrosas e cristãs. Esse é, enfim, o preço que preciso pagar, em vida, por essa mesma vida que se finda? Eu teria sido ainda mais pagã, se quer saber. Me queixo, unicamente, de não ter ido mais longe, enlouquecido mais, amado mais homens. Afinal, meu maior medo, a velhice, se extingue nesta cama.
Ontem, enquanto a enfermeira reposicionava os travesseiros e eu resmungava incompreensivelmente, pensei: Por que não? Por que não morrer? Qual é o problema? Temos milhões de pessoas em todo o mundo, uma superpopulação que se divide entre os consumistas e os miseráveis. Eu deveria mesmo passar por isso com coragem e acreditar que estou vagando espaço precioso no mundo. Eu me mataria, se conseguisse me levantar. O melhor analgésico, o melhor. Ridículo esse apego animalesco de preservação da espécie.
Preciso findar essa carta aqui. Hora da medicação.
Muita saudade, querido.
M.
13.7.09
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