13.9.09

M.P.,

Primeiro: que palhaçada é essa de "Sou só um peso. Não sirvo pra nada."? Ao ler isso, meus óculos saltaram longe de espanto que alguém como você tenha coragem de se apontar desta maneira. Absurdo!
Compreendo, apesar de parecer que não, as dificuldades pela quais vem passando. Levar o mundo nas costas é tarefa que, talvez, nem Sísifo fosse capaz de cumprir. Mas a questão é: como um homem tão bem arquitetado em seus pensamentos, pode cair em tal armadilha moral? Crer que a comunidade depende unicamente de seus ombros pra carrega la. Continue assim e não passará de um cabide universal. Para que uma comunidade funcione, é preciso que haja o sentimento de responsabilidade coletiva, o sentimento pulsante de que se está caminhando para o mesmo lado, construindo as paredes da mesma moradia. Inútil espernear e choramingar sozinho.
Eu expulsaria os membros incovenientes sob certeiros sopapos verbais. Vermes da impotência, da incredulidade e do vazio, agentes da mediocridade, do populismo e da imagem! Eu os esmagaria! Ainda que a anarquia seja impossível, meu amigo, eu não suportaria ver a displicência de terceiros esmaecendo as cores de meus planos. Lute com coragem! O amor e a beleza também se erguem sobre os punhos de um homem! Não há comiseração que lhes sirva. Não, não, não! É preciso abrir caminhos de palavras e deixar que o verbo seja a guilhotina dos parasitas ideológicos. É preciso arregaçar as hipocresias e garantir que essa sedução escrota do "amor livre", do "vamos todos juntos, enquanto espero sentado" seja repudiada pelo pensamento crítico.
Ah, meu querido amigo... Desconfio, no entanto, que esta nem seja tua real questão. Anseias abandonar? Faça! Role novamente a tua pedra morro acima e erga o sol do novo dia.
Eu estou bem, engordei um pouco, já caminho com tranquilidade e firmeza. Foi triste ter que dispensar a tal enfermeira, mas assim foi feito. Espero retomar os trabalhos na universidade daqui a poucas semanas, já não suporto ficar trancafiada. Me sinto Bárbara de Alencar, em seu claustro. Olhando o mar por entre frestras, sentindo os resquícios da manhã, sem, no entanto, ser capaz de toca la.
Tão logo este carcereiro abandonará os portões abertos e, com saúde, poderei pisar a areia flácida da praia.
Roberto veio me ver. Acredita que se tornou evangélico? Arrependido, resignado pelos anos de adoração ao diabo, pela luxúria, pelos vícios. Busca a cura, após a morte de seu pai, para o homossexualismo que, segundo ele, é o mal que o cegou nesses anos todos. Juro que assisti, incrédula, ele desfolhar palavra por palavra a Bíblia, desfiando pacientemente o pensamento judaico -cristão da culpa, da resiliência e da impotência. Diante da cena, que eu adjetivaria como bizarra, pensei mesmo que ele esquizofrenizara. Lembra como ele sofria por que o pai o rejeitava? Bebia e chorava horrores.
Nenhum problema quanto a opção religiosa das pessoas, mas ao ouvir que ele se atacou até minha casa para me salvar, apossou -se de mim uma revolta incontrolável. Avancei sobre ele! Mas antes de desfigurar lhe a cara, pensei: não me custará nada ser salva. Se meu amigo precisa me salvar, ainda que eu, de nenhuma maneira esteja em perigo, nem mesmo disposta ao arrependimento, laisser faire.
Ele rezou, chorou baixinho por alguns minutos e foi embora. Temo por ele.
Paro aqui...

Abraços.


M.

2.9.09

Querida M.,

Tanta coisa aconteceu nestes últimos dias que ainda nem sei o que pensar e fazer da vida. Desculpe-me pela demora na entrega da carta, tentei lhe escrever várias vezes mas sempre me faltaram palavras ou mesmo forças para continuar. Os últimos dias aqui não foram lá muito agradáveis, por isso não se anime muito em receber notícias minhas. Estou de mudança novamente. Vou largar a comunidade para viver sabe Deus onde. As coisas estão difíceis e não é por esperar a bondade nos outros, você sabe muito bem que não tenho essa visão romântica das mudanças. Tenho que reconhecer meu limite e ter autocrítica, tentar perceber o que deu errado, me afastar para poder ver de perto. Passaram-se três anos... muita coisa boa aconteceu, é verdade, mas tentar construir uma comunidade anarquista de verdade é muito difícil. De um tempo pra cá, o grupo sofreu muita mudança. Muita gente oportunista entrou e isso tem criado situações constrangedoras entre a gente. Não é só a dificuldade de relacionamento interna que tem se tornado um obstáculo, mas o grupo tem sido mal-falado, além das chuvas constantes no começo do ano que destruíram boa parte da plantação que nos ajudava a sobreviver aqui. E é no momento de dificuldade que a gente vê quem é quem... Algumas pessoas se entristeceram com minha partida, mas ela se faz necessária. Você me disse, na última carta, que eu precisava ser líder e estratégico. Eu já havia tentado, mas acho que não fui muito bem. Confesso que tinha muito medo de assumir uma liderança pois não gosto de autoridades, mesmo que simbólicas. Mas enquanto me esforçava para colocar em prática minhas idéias, o tempo se encarregou de mudar minha visão e me fez perceber o óbvio: cada pessoa é diferente. Aceitar minha diferença em relação ao grupo foi o que mais me doeu. Não sirvo mais pra esse lugar. Não acrescento em nada, sou apenas um peso. Temos objetivos diferentes e é por isso que optei por minha saída. Desculpe-me pela confusão neste texto... eu mesmo ainda estou muito confuso e incerto com meu futuro.
Eu ainda estou com muita vontade de lhe visitar pois a saudade é grande e a preocupação com sua saúde a torna ainda maior. Mas, por tudo que aconteceu comigo aqui e por ficar mais tranquilo ao saber que você está melhor, acaterei sua proibição. Sorte sua. Depois que resolver a minha vida vou dar um pulo na sua casa pra lhe visitar para ver com os meus próprios olhos que você continua linda, pois não acredito nem um pouco na idéia de que você não tem condições de seduzir esses enfermeiros garotões.
Quanto ao filme que você falou, eu ainda não o vi. Mas, com um tema parecido, já li "Johnny vai à guerra" e fiquei imaginando como seria ficar preso em si mesmo. Agoniante, mas muito bom (o livro, é claro).
Tenho que ir. Há muita coisa para arrumar e muitas decisões para tomar.
Pode escrever para cá, ainda. Só partirei depois que receber uma nova carta sua. Depois lhe escreverei sabe-se lá de onde.
Beijos afetuosos, minha "sádica" e linda amiga.
M.P.